A Agroecologia se estabeleceu como ciência a partir dos anos 90 do século XX, depois de um longo processo de desenvolvimento e integração de ideias, princípios e conceitos que remontam ao fim da Primeira Guerra Mundial.
Nesse intervalo, os movimentos pró-sustentabilidade em formação, altamente influenciados por movimentos espiritualistas, místicos e políticos, tornaram-se permeáveis a diferentes pseudociências que, ainda hoje, encontram espaço nas chamadas “agriculturas alternativas”.
Quais as consequências disso para a construção da sustentabilidade na agricultura? Confira nos tópicos abaixo.
Agroecologia como Ciência
O desenvolvimento técnico-conceitual da Agroecologia foi uma resposta da comunidade científica à demanda da população por alimentos mais saudáveis e à necessidade do estabelecimento de sistemas sustentáveis, baseados mais em processos (ciclagem de nutrientes, reposição de matéria orgânica, fluxo de energia solar, etc.) que em produtos industriais (agrotóxicos, fertilizantes solúveis, hormônios vegetais, etc.).
Por isso, trata-se de um conjunto de informações – próprias e oriundas de outras ciências – que, quando somadas, permitem o planejamento de sistemas agropecuários capazes de produzir alimentos e matérias-primas e, ao mesmo tempo, acelerar a recuperação de áreas degradadas, aumentar a biodiversidade, regenerar microbacias, dentre outros benefícios ambientais.
Justamente por conta dessa grande responsabilidade econômica-ambiental-social, os pesquisadores da área só recomendam determinada técnica depois do respaldo científico, ou seja, depois de um longo processo que envolve experimentação, repetição, controle local e avaliação por outros estudiosos da área.
Proceder diferentemente significa correr o risco de passar adiante práticas que não resultem em retorno de fato ou que impactem negativamente a produtividade agrícola, o que pode afastar definitivamente potenciais agricultores interessados em aderir a sistemas mais viáveis e inteligentes ecologicamente.
Mais que isso, construir uma Agroecologia com base em princípios científicos sólidos é a única forma de garantir o sucesso da transição para novos modelos realmente mais funcionais.
Pseudociência no Campo
Organizações não governamentais (ONGs), movimentos sociais, escolas de agricultura, dentre outros, não raro bem intencionados, tendem a deixar de lado o aspecto fortemente científico da Agroecologia e disseminar práticas como o uso de nosódios, plantios com base em calendários astrológicos e lunares, preparados biodinâmicos, etc.
O uso de nosódio – medicamento homeopático preparado a partir de amostras patológicas animais ou vegetais e, no caso da agricultura, a partir de organismos pragas – ainda é recomendado no controle de problemas fitossanitários, embora haja consenso na comunidade científica internacional de que isso seja ineficaz.
Também, o plantio com base em calendários lunares ainda é comum, embora há décadas a ciência já tenha estabelecido que não há relação entre a sanidade e a produtividade vegetal e a fase da lua quando do plantio: embora as plantas também tenham um “relógio biológico”, não há qualquer evidência de que a lua cheia afete os vegetais de maneira tal que justifique a escolha de data de plantio com base nisso; não há provas científicas que a seiva vegetal responda significativamente a diferentes níveis de luminosidade lunar; os únicos organismos fotossintetizantes que usam a luz da lua são alguns tipos de fitoplâncton.
O mesmo se aplica à observância de calendários astrológicos que, embora recomendados na Agricultura Biodinâmica, por exemplo, não acumulam qualquer evidência científica ou prática quanto às vantagens de seu uso.
Os preparados biodinâmicos, desenvolvidos e prescritos por Rudolf Steiner, supostamente mediam forças terrestres e cósmicas no solo e aceleravam diversos processos, como compostagem, desenvolvimento vegetativo, frutificação, etc.
Porém, mais uma vez, são produtos que carecem de validação e cujas formulações envolvem algumas sequências de eventos, no mínimo, curiosos, como enterro de chifres bovinos cheios de esterco durante o outono ou o armazenamento de ervas em bexigas urinárias de cervos.
Agricultura Biodinâmica
O caso mais emblemático de pseudociência na Agroecologia talvez seja o da Agricultura Biodinâmica que, como base, utiliza diversos conceitos esotéricos desenvolvidos a partir das ideias de Steiner (1861–1925) e que teve, na década de 1920, grande impulso ao tratar da fertilidade do solo, do crescimento das plantas, e dos cuidados da pecuária como tarefas ecologicamente inter-relacionadas e detentoras de aspectos espirituais e místicos.
Porém, os seus aspectos alquímicos e mágicos desagradaram desde sempre a comunidade acadêmica, pois a maioria das afirmações de Steiner não são demonstráveis – uma vez que hipóteses cientificamente claras não podem ser formuladas a partir de seus preceitos – e, também, as poucas ideias testáveis não apresentaram resultados agronômicos convincentes.
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Bases Científicas da Agroecologia
A presença de pseudociências é prejudicial à própria credibilidade da Agroecologia diante da opinião pública mais esclarecida; porém, mais do que isso, essa ciência tem práticas tecnicamente respaldadas e seria um absurdo preteri-las para dar espaço a outras tantas práticas sem qualquer comprovação experimental.
Na Nutrição Mineral de Plantas, por exemplo, a Agroecologia explora:
- a relação simbiótica de plantas com organismos solubilizadores de fósforo (como fungos micorrízicos) e fixadores no nitrogênio atmosférico (os genericamente chamados “rizóbios”);
- investe na ciclagem de nutrientes através da diversificação do sistema e de podas periódicas;
- utiliza “micro-organismos eficientes” capturados com iscas de amidos em áreas florestadas;
- utiliza consórcio de espécies com sistemas radiculares diversos, etc.
Na Defesa Fitossanitária, a maior complexidade do sistema, composta por diversas espécies com funções ecológicas complementares, resulta na manutenção dos organismos considerados pragas em outros contextos em níveis muito abaixo do nível de dano econômico.
Exemplo: um inseto em uma área com apenas plantação de soja pode assumir papel de praga. No entanto, em área mais diversa, a própria diversidade mantém sua população controlada.
A Ecologia (notadamente a Ecologia de Comunidades e Populações), como último exemplo, permite o planejamento de práticas que naturalmente favorecem a sinergia entre funções ecossistêmicas; ou seja:
- diversificação funcional;
- continuidade de cobertura viva e morta;
- aumento da matéria orgânica do solo;
- favorecimento dos inimigos naturais e controle natural;
- e o desenho de uma “infraestrutura” ecossistêmica que regula o fluxo de água e microclima resultando em:
- produção contínua, regional e variada;
- echamento do ciclo de matéria (a biomassa produzida é utilizada, em sua maior parte, dentro da própria área);
- aumento da eficiência de uso de nutrientes;
- autorregulação de “pragas” e “doenças”;
- amortecimento de fluxos hídricos (a área nunca está muito seca ou muito encharcada);
- mitigação de extremos microclimáticos (a variação de temperatura local é muito menor ao longo do dia e das semanas);
- e conservação local de agrobiodiversidade.
Dessa maneira, embora muitas lacunas a respeito do processo de construção de sistemas altamente produtivos e sustentáveis precisem ser preenchidas, já existem informações suficientes e confiáveis capazes de nortearem os agricultores rumo à transição agroecológica.
A solução diante da presença de pseudociência dentro da Agroecologia é, mais uma vez, o desenvolvimento de uma comunicação científica séria no país: estudantes, pesquisadores, empresários e professores precisam desenvolver canais de comunicação com a população e com o Poder Público, seja através das mídias tradicionais e online, seja através de organizações de caráter mais formal e político, para esclarecimentos acerca da verdadeira natureza científica da construção da sustentabilidade.
Os brasileiros e a Administração Pública precisam entender que Agroecologia começa no laboratório e utiliza informações intelectualmente sofisticadas; ela não está em rituais, em cristais ou em preparados místicos.
Autoria do redator do Ifope:
Elialdo Alves de Souza
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